Convocando os adolescentes problemáticos
Os pais não querem agir como adultos responsáveis e conscientes? Sem problema. Há um vasto catálogo de instituições prontas para transformar muito dinheiro – dos pais ou público – em traumas eternos.
Estou segurando o choro. Passa de onze da noite, um cachorro pé-duro levanta o focinho para tentar me identificar e volta a dormir enquanto, na calçada, um homem de meia-idade canta “No, woman, no cry. Little darling, don't shed no tears. No, woman, no cry” acompanhado de um violão. Ninguém vai acreditar nisso quando eu contar, quase sorrio. Mais um quarteirão e chego na farmácia 24h ao lado do mercado. Meu celular Nokia-modelo-não-existe-mais ainda tem um resto mortal de bateria. Sou uma adolescente sozinha na quase madrugada do centro da cidade, mas a farmácia promete olhar por mim. Não sei se posso voltar para casa, não tenho dinheiro, talvez esteja sendo muito dramática, eu me pergunto se fui muito dramática. A luz fria do letreiro que diz “PagueMenos” promete espantar o perigo.
Soube da existência da Indústria “Troubled Teen” quando assisti ao documentário da Paris Hilton, This Is Paris, em que ela denuncia as variadas torturas que sofreu num internato para “adolescentes problemáticos”. Há alguns meses, enquanto montava o material para meu curso Escrevendo a infância ferida, encontrei o documentário Teen Torture, Inc. (Adolescentes - Tortura e Abuso, disponível aqui) e reconheci Paris Hilton ao lado de outra ativista, Jen Robinson, que foi “colega” de Paris no mesmo internato. O lugar se chama Provo Canyon School (que continua funcionando) e coleciona histórias de horror. Jen teve sua cabeça raspada por funcionários que a apelidaram de “Auschwitz”. Paris conta que foi “contida violentamente e arrastada pelos corredores, despida à força e jogada em confinamento solitário, obrigada a engolir medicamentos e abusada sexualmente pelos funcionários”.
Nossa, mas uma indústria? Sim. É claro que existe toda uma indústria de programas de tortura disfarçados de escolas, internatos, acampamentos, etc., especialmente focados em destruir crianças e adolescentes. Os pais não querem agir como adultos responsáveis e conscientes? Sem problema. Há um vasto catálogo de instituições prontas para transformar muito dinheiro – dos pais ou público – em traumas eternos. No Reddit, o subreddit r/troubledteens reune vítimas que contam suas histórias de décadas ou semanas atrás, disponibiliza uma lista de participantes dispostos a conversar e encontrar outras pessoas que foram torturadas nos mesmos lugares e compartilha informações importantes, como tipos de abuso mais comuns nesses programas: negação de assistência médica, isolamento, trabalho forçado, contenção física, entre muitos outros.
Não me surpreendeu saber que isso tudo existe. Na verdade, quanto mais eu pesquisava, mais constavava que eu poderia ter sido uma das adolescentes sequestradas no meio da madrugada por homens enormes que teriam me jogado num carro, depois debaixo de um chuveiro para lavar meu cabelo com xampu anti piolho e eu demoraria alguns meses até desistir de lutar e tentar fugir. Não porque eu era uma “delinquente juvenil”, mas sim porque ninguém reconhecia que eu era uma criança traumatizada e negligenciada. O único ato ilegal que eu cometia era beber vinho que custava R$ 2. Ou seja, dentro da indústria de programas para moer crianças, uma ação imperdoável e, na visão dos pais, impossível de lidar. Pobres pais. Como no caso de Katherine Kubler, diretora e produtora do documentário The Program: Cons, Cults, and Kidnapping (O Programa - A Indústria dos Internatos Abusivos disponível aqui), que foi pega bebendo Mike’s Hard Lemonade (5% de vodka com suco de limão, à venda no Brasil) e isso lhe garantiu um sequestro na calada da noite direto para Ivy Ridge. No programa da Ivy Ridge, Katherine e outros adolescentes como ela não podiam falar (sim, literalmente), sofriam punições físicas e eram trancados em solitárias. Só que ninguém tem que ser flagrado bebendo uma Smirnoff Ice com sua turminha do ensino médio para acabar como vítima desses programas. Se seus pais não gostam do seu namorado ou se você tem autismo, como exemplos reais de garotas vítimas da Elan School, você está em risco.
Tenho lido e assistido muitas coisas a respeito da Indústria Troubled Teen. Entre livros muito importantes, um quadrinho online – que me fez encontrar um vídeo que até hoje me perturba – e matérias sobre o ativismo da Paris Hilton, como essa aqui no The New York Times, de vez em quando preciso parar um pouco e respirar estrategicamente. Sempre me sinto irritada quando alguém diz que uma obra de ficção sobre violência contra crianças “exagerou demais” ou, na melhor das hipóteses, fala que até “podem existir crianças em situações parecidas”; não suporto encarar o fato de que as pessoas realmente não sabem que números gigantescos de crianças e adolescentes vivem realidades aterrorizantes e muito mais criativas na categoria crueldade do que meu romance Corpo desfeito e, sim, em diversos casos, mais do que o controverso Uma vida pequena (um dos meus livros favoritos da vida).
Porém, independentemente da criatividade dos carrascos, cada criança carrega seus traumas do seu jeito. Uma vítima de um desses programas publicou o seguinte comentário no r/troubledteens:
“Finalmente consegui sentar e assistir a O Programa. Ver as interações entre Katherine e o pai dela realmente me pegou de surpresa. A forma como ele assume total responsabilidade e permite que ela expresse a raiva que sente por ele é, de certo modo, algo bonito. Ele lida com paciência com as consequências da decisão que tomou. Dá a ela muito tempo e espaço para que elabore o trauma. Ele pede desculpas continuamente e valida seus sentimentos. Estranhamente, isso quase me fez chorar; nunca vi um pai/mãe responder dessa maneira. É possível sentir o quanto de amor existe ali, e eu realmente admiro a forma como eles interagem. Achei simplesmente muito doce. Fico um pouco triste por não ter isso com um dos meus pais, mas prefiro me concentrar em apreciar a dinâmica deles à distância.
Rompi com a maior parte da minha família por ter crescido na TTI (Troubled Teen Industry). Estou afastada dos meus pais há quase oito anos. Não há volta. Minha mãe ainda se recusa completamente a reconhecer os danos ocorridos ao longo daqueles anos. É mais fácil fazer gaslighting e negar que eu sou uma pessoa racional e saudável que foi tão prejudicada. O ego dela como mãe é mais importante para ela do que eu jamais fui, e isso custou nossa relação. Minha raiva foi tomada como algo pessoal, e fui sufocada e silenciada por tanto tempo. Estou exausta da impaciência e da falta de compreensão dos meus irmãos.”
No último domingo, dia 8 de junho, falei sobre trauma na infância usando a obra Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou, como base para análise. Fiz uma aula expositiva no início do clube de leitura do Hub Górgona e destaquei o trauma social, levando em consideração o que a pequena Maya e seu irmão viveram naquele contexto segregado racialmente, e também sobre trauma na infância com destaque para o que Maya e seu irmão sofreram, cada um a seu modo. Muito do que os machucou envolve negligência dos pais.
Quando dou aulas e oficinas sobre como escrever literatura retratando as diversas faces do trauma, sempre falo de como o impacto do trauma pode ser devastador - e perdurar por toda a vida. Acompanhando os depoimentos das vítimas da Indústria Troubled Teen, as consequências pós-traumáticas na vida dessas pessoas ficam evidentes. Katherine Kubler lida com essas consequências usando seu senso de humor: a certa altura do documentário, ela mostra como as coisas do internato eram de péssima qualidade e diz algo do tipo “Olha só, pai, seu dinheiro serviu pra isso aqui. E pra me dar Estresse Pós-Traumático”. E dá risada.
Muitas vítimas desses programas – e do trauma na infância no geral – não conseguem insistir na vida até entender se são do tipo que faz piada com coisas pesadas. No caso de duas adolescentes da Asheville Academy, um programa só para garotas, as vítimas não suportaram tudo que estava acontecendo e cometerem suicídio dentro da instituição. O dono da Asheville Academy, por sinal, teve um programa só para meninos fechado pelas autoridades da Carolina do Norte no ano passado. A licença do Trails Carolina foi revogada depois que um garoto de 12 anos foi encontrado morto em uma cabana um dia depois de ter chegado.
Enquanto escrevo esse texto, instituições e programas que torturam e traumatizam crianças e adolescentes continuam abertos. Pais sem autorresponsabilidade e, francamente, em incontáveis casos, também sem caráter, continuam tratando seus filhos como seres que não merecem cuidado, autonomia ou sequer voz. Isso tudo acontece nos EUA dentro da Indústria Troubled Teen, mas também acontece na casa super brasileira da cidade onde você mora.
Sei que, enquanto escrevo esse texto, inúmeros “adolescentes problemáticos” ouvem gritos de adultos que ameaçam expulsá-los de casa. E, entre tantos absurdos e realidades revoltantes, esse é um exemplo de algo que jamais vou deixar passar como aceitável: ter apenas 15 anos e sentir medo de ser jogado na rua.
Escrevendo ficção sobre trauma na infância
Você tem apenas hoje para se inscrever no meu curso Escrevendo a infância ferida.
Hora de escrever aquela história. Montei um curso incrível, com muito material de apoio, diferentes linguagens e exercícios de escrita certeiros. Todas as informações aqui.
Sinta a atmosfera da newsletter
I feel so crazy
My head is filled with broken mirrors
So many, I can't look away
I'm in a bad way
If I could fix the broken pieces
Then I'd have a happy mistake
E vale lembrar: essa newsletter não passa por revisão. Errar faz parte.
Beijos com sede de vingança,
Jarid
EUA sempre sendo um baluarte das piores coisas existentes no mundo.
Sou analista de crianças e adolescentes, que embrulho no estômago me deu ao ler!
Mais um texto potente. Não sabia do ativismo e dos traumas de Paris. E nem de toda essa indústria que você escreveu. Mas conheço a insegurança do poder ser expulsa de casa aos 15 anos, e olha que eu nem era tão 'problemática' assim.