Eu não fiz diferença como jurada na lista de melhores livros da Folha
E as múmias empoeiradas da literatura brasileira adoram dizer que os livros de hoje fazem sucesso pelo conteúdo, não pela forma.
De várias maneiras, eu ainda sou a garota que espalhou uma fofoca a respeito de si mesma no primeiro dia de aula. Escola nova, não queria confiar em ninguém, me recusava a sofrer bullying, procurei a adolescente com mais cara de nojenta que identifiquei e disse eu sou bissexual, mas não conta pra ninguém, tá?
A minha maneira principal de responder aos estresses e perigos do mundo continua sendo a luta. Opa, uma onça na serra? Pois eu pego a bicha pelo rabo. Eu morro, mas morro matando.
Enquanto alguns fogem e ficam quietos na moita, enquanto outros congelam e são estraçalhados vivos, eu sou a insuportável Mônica-Luluzinha-Lucy-van-Pelt-Mafalda se achando a mais espertinha e invocada do bairro.
Então se me convidam para ser jurada de um prêmio, edital, lista ou competição de fisiculturismo, eu vou aceitar e acreditar que posso fazer a diferença. Foi simples assim quando recebi o convite para indicar dez livros para a lista de Melhores livros brasileiros de literatura do século 21 publicada pela Folha.
Entre os livros que considerei escolher, apenas um deles acabou não entrando na minha lista oficial: Um defeito de cor. Eu tinha certeza de que ele seria indicado por muitas pessoas – e foi, ficou em primeiro lugar –, então decidi manter apenas uma escolha óbvia e, com as outras nove vagas, fazer a diferença.
Na minha lista de indicações, alguns dos livros podem ser considerados escolhas óbvias, claro. Porque são muito bons mesmo e são famosos. No entanto, eles também seguram uma relevância muito difícil de conquistar: são livros maiores do que a noção de qualidade literária.
Por favor, não me entenda mal. Todos os livros que escolhi são excelentes do ponto de vista de escrita estética forma estilo enredo personagens língua pontuação figuras de linguagem poética ritmo tamanho dos parágrafos pulos de linha construção de frases uma palavra seguida da outra etc. Mas os 25 melhores livros brasileiros de literatura do século 21 precisam ser mais do que uma palavra seguida da outra pontuação figuras de linguagem.
É o que eu penso.
Dos 10 livros que indiquei, apenas 5 entraram na lista final ou na lista dos que tiveram pelo menos 3 votos. Começando pelo “pódio”, minhas indicações foram:
Torto arado, de Itamar Vieira Junior – ficou em 2º lugar com 35 votos
Olhos d'água, de Conceição Evaristo – ficou em 6º lugar com 16 votos
Amora, de Natalia Borges Polesso – ficou em 23º lugar com 8 votos
Entre os 3 vencedores acima, nenhum deles precisaria do meu voto para fazer parte da lista dos 25 melhores e apenas Olhos d’água desceria um lugarzinho, empatando com outra obra.
Dos livros que indiquei e que não ficaram entre os 25 melhores, mas ainda foram citados, temos os seguintes títulos:
A cabeça do santo, de Socorro Acioli – teve 4 votos
O peso do pássaro morto, de Aline Bei – teve 4 votos
Como o mínimo para ser citado na lista era 3 votos, ambos estariam imortalizados na publicação mesmo sem meus votos.
Por fim, indiquei também os livros abaixo, mas esses não tiveram pelo menos 3 votos:
Ninguém quis ver, de Bruna Mitrano
Gótico nordestino, de Cristhiano Aguiar
Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje, org. de Gabriela Soutello
Inventário de Predadores Domésticos, de Verena Cavalcante
A palavra que resta, de Stênio Gardel
Todos eles são excelentes e muito mais do que excelentes. Todos os livros que escolhi, desde o pódio até os que não tiveram o mínimo de 3 votos. Todos são relevantes como marcos do gênero (como Gótico nordestino é para o horror) ou por terem conquistado reconhecimento internacional (como Inventário de Predadores Domésticos, também de horror, e A palavra que resta). Também trazem uma proposta inédita para a literatura brasileira, incluindo o papel de registro histórico (como Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje) e trincam as janelas bonitonas da “alta poesia” (como Ninguém quis ver).
Com qualidade de escrita, tá? Qualidade de forma, excecução, estética e tamb–zzzzRONC
Ainda que muitos desejem invalidar o que julgam ter sido escolhido pelo conteúdo, não “pela forma”, eu não vou gastar mais do que este parágrafo para falar a respeito disso. Quando vejo as múmias empoeiradas* da literatura brasileira afirmando que hoje em dia os livros fazem sucesso pelo conteúdo, o que eu entendo é que os livros que as múmias empoeiradas* acham incríveis não têm conteúdo que preste, são pelo menos chatos, usam as mesmas ambientações, o mesmo tipo de personagem, aquela mesma coisice toda, porém, por terem na capa certos nomes, é considerado um absurdo que quase ninguém esteja muito interessado. Vocês estão interessados? Bom, eu sei que não estou.
(*Importante: “múmias empoeiradas” não diz respeito aos anos de vida das múmias empoeiradas.)
Mas sabe o que me interessa? Entender por que A palavra que resta, de Stênio Gardel, não teve nem mesmo 3 votos.
Na minha ingênua ótica de escritora que acha incrível ser um autor brasileiro vencedor do National Book Award e alcançar reconhecimento internacional, eu jurava pelas deusas que esse livro estaria no pódio. Pelo menos em 10º lugar, vai.
Mas na minha ingênua ótica de escritora nordestina bissexual do sertão do Ceará que acha o ápice do que há de incrível ser um autor brasileiro nordestino gay do sertão do Ceará vencedor do National Book Award e alcançar reconhecimento internacional, eu jurava pelas deusas que esse livro estaria pelo menos na lista dos votos mínimos.
“Crescendo como um garoto gay no sertão do Nordeste brasileiro, era impossível para mim pensar em sonhar com tamanha honra, mas por estar aqui esta noite, como um homem gay, recebendo essa honraria pelo livro sobre a jornada de outro homem gay se aceitando, eu gostaria de dizer a todas as pessoas que já se sentiram erradas a respeito de si mesmas, que o coração e o desejo de vocês são reais, e vocês são merecedores, como todos os outros, de uma vida plena e de alcançar sonhos impossíveis.” (Parte do discurso de Stênio Gardel ao receber o prêmio National Book Award com A palavra que resta ou The Words that Remain, tradução de Bruna Dantas Lobato.)
É, Stênio, eu sinto bem aqui, bem nesse lugar que a gente sabe qual é, como é, quanto vale.
Aí eu penso nas múmias empoeiradas da literatura brasileira e tenho que concordar com meu amigo Alexandre Nunes: “A palavra que resta não estar na lista final da Folha mostra o quanto o caminho é longo para o reconhecimento da literatura feita por nordestino.”
Soube ontem, em privado, que A palavra que resta teve 2 votos. O meu e o de um amigo escritor também nordestino.
Acho importante citar o protesto da autora Fabiane Guimarães, que chama nossa atenção para a ausência de livros escritos por autores do centro-oeste do Brasil. Assim como também acho importante pensar sobre o domínio das editoras grandes. Mas tenho um mas.
Muitos dos donos de editoras que se autodeclaram pequenas e manifestaram suas críticas afiadas são, na verdade, donos de negócios que publicam dezenas e dezenas de livros por mês, usando o modelo de meta mínima de pré-venda ou lançamento (o autor é obrigado a comprar os livros que não foram vendidos dentro da meta) e que fazem chamadas abertas tão sem critérios de qualidade que suas editoras nem sequer fazem o trabalho de revisão de texto; os autores – quase sempre iniciantes – são obrigados a entregar o arquivo do original já revisado e fechado, pronto para diagramar e imprimir. Como essa edição da newsletter não é sobre essas editoras e seus donos, eu recomendo que leiam esse meu texto aqui. Mas para resumir: o bonito não faz nem revisão de texto e quer chorar por que sua editora não é reconhecida por qualidade literária? Me economiza, guru de seita.
Há editoras pequenas e médias publicando livros maravilhosos, editando texto, revisando, preparando e pagando direitos autorais em dinheiro. Como autora que começou totalmente independente, pegando empréstimo para mandar imprimir meu humilde livro que não tinha sequer orelhas, falar sobre bibliodiversidade me interessa demais. Talvez eu seja um bom exemplo dentro desse assunto, né? Como as múmias da literatura brasileira gostam de dizer, eu sou um acúmulo de supostos conteúdos identitários feito torre de “grupos minoritários” dos quais supostamente faço parte e, olha, eu gosto demais de livro que faz sucesso pelo conteúdo, viu?
Então, depois disso tudo que escrevi, acho que podemos concluir duas coisas:
Eu não fiz diferença nenhuma como jurada na lista de melhores livros da Folha
O fato de eu ter aceitado participar como jurada na lista de melhores livros da Folha foi a diferença que fiz
O Walter Porto, que me enviou o convite para ser jurada na lista de melhores livros da Folha, fez essa diferença comigo.
E nós podemos conversar mais sobre essa lista, melhores livros, editoras de todos os tamanhos e sertanejos esquecidos no churrasco, mas agora eu tenho que fechar os livros finalistas de mais um prêmio do qual aceitei ser jurada pensando em fazer a diferença.
Vamos torcer para que dessa vez eu vá além da participação.
Autor, você teve um livro publicado por uma editora e a situação acabou virando um pesadelo?
Se você se sentiu lesado ou prejudicado por uma editora, tenho algo para você:
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Escrevendo a infância ferida – curso online
Criar personagens e narradoras crianças dentro de enredos sobre trauma é sempre desafiador.
Por isso, no curso Escrevendo a infância ferida, os participantes irão aprender e aprofundar conhecimento, técnica e prática para entender as múltiplas complexidades do trauma na infância e como escrevê-lo na ficção literária.
Encontros online (as aulas serão gravadas e enviadas para todos os participantes)
14/06, 28/06, 12/07 e 26/07 – das 9h às 12h – R$ 500
Inscreva-se: oficinas@jaridarraes.com
Escrevendo a infância ferida inclui:
– Conteúdo de não-ficção especializado em trauma na infância
– Material de apoio em pdf.
– Bônus #1: primeira aula em vídeo do curso Escrevendo o trauma
– Bônus #2: primeira aula em vídeo do curso Contos: a escrita de um redemoinho
– Lista sugerida para leitura
– Análise de criações literárias focadas em trauma na infância
– Exercícios exclusivos de escrita
– Curadoria de conteúdo em vídeo focado em trauma na infância
– Grupo de whatsapp (para quem desejar)
– Aulas ao vivo que serão gravadas
– Leitura crítica das produções dos participantes
Unindo psiquiatria, psicologia, neurofisiologia e literatura, desenvolvi aulas e exercícios de escrita inéditos para que os participantes construam um repertório robusto e profundo, finalizando o curso com todas as ferramentas indispensáveis para escrever literatura sobre trauma na infância.
Criação Hub Górgona
Sinta a atmosfera da newsletter de hoje
“Pode ser que ninguém me compreenda
Quando digo que sou visionário
Pode a bíblia ser um dicionário
Pode tudo ser uma refazenda
Mas a mente talvez não me atenda
Se eu quiser novamente retornar
Para o mundo de leis me obrigar
A lutar pelo erro do engano
Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar
Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar”
O texto não passou por revisão, então usando uma boa despedida brasileira entre as 25 melhores do mundo: desculpem qualquer coisa.
Sete beijos de fio amolado,
Jarid
É isso, Jarid. Nem o fato do cara ganhar o National Book Award fez diferença. Se você não é sudestino, não faz diferença
vc é minha inspiração sabia?