Eu tinha apenas 3 anos
Eu sabia que tinha que permanecer quieta e calada, mas não lembro do rosto dele. Já tentei de muitas formas, mas não consigo lembrar quem foi um dos meus carrascos.
Quando acordei e percebi que estava sozinha, senti medo do escuro. Por isso desci da cama, descalça. Por isso abri a porta que dava para a mesa de jantar. Por isso olhei para a sala. A televisão exibia o programa do Jô Soares. Lembro que olhei para ele, sentado numa das poltronas de cipó escuro. Voltei para a cama, deitei de bruços. Lembro que ele veio logo em seguida, sentou ao meu lado. Colocou a mão por dentro do meu short. Eu sabia que tinha que permanecer quieta e calada, mas não lembro do rosto dele. Já tentei de muitas formas, mas não consigo lembrar quem foi um dos meus carrascos. Eu tinha apenas 3 anos.

Existem mecanismos de proteção ou reações que são ativados por nossa mente diante de traumas intensos. Alguns deles, que podem explicar por que não lembro do rosto de um dos meus abusadores, se chamam dissociação e amnésia dissociativa.
Para mim, lembrar sempre foi um esforço doloroso. Sempre que eu ouvia outras pessoas se declarando nostálgicas ou resgatando momentos das suas infâncias, eu me sentia desmantelada. Claramente eu deveria ter recordações boas do meu passado infantil e conversar sobre elas em meio a risadas. E eu até tinha alguns exemplos de coisas divertidas para compartilhar, porém elas sempre vinham de braços dados com memórias intrusivas que me faziam sentir ansiedade, tristeza e vergonha. Mais ou menos assim:
Eu amava brincar na rua e voltar para casa toda suja de barro. Eu tinha vários amiguinhos, incluindo o Felipe (nome falso), de 16 anos, que me encurralou num canto da casa dele e me fez tocar no seu pinto. E eu dançava muito bem, sabia todas as coreografias do É o Tchan!, passava a noite toda dançando com uma amiguinha vizinha dos meus avós. Enquanto a gente dançava na calçada, alguns homens adultos, no bar da frente, nos assistiam. A casa dos meus avós era grande, estava sempre cheia de pessoas, tinha telefone sem fio, uma fila-brasileiro babona e sofás de cipó escuro que deixavam minhas pernas marcadas. Numa noite, um homem que estava sentado num desses sofás entrou no quarto onde eu dormia sozinha e abusou de mim sexualmente. Quando acordei de manhã, minha avó tinha feito mingau de aveia e salpicado canela por cima. Ela sempre servia num pratinho de porcelana que parecia coisa de boneca, com as bordas douradas. Minha avó sempre foi linda, tinha caixas de jóias, cozinhava praquele monte de gente enquanto ouvia Reginaldo Rossi e Alcione e, de vez em quando, ela e as mulheres adultas saíam tarde da noite para serestas. Depois do banho, eu preferia vestir a roupa limpa ainda dentro do banheiro, tinha medo de sair pela casa só de toalha. Mas quando meus avós se mudaram para a chácara, eu não sentia mais esse medo, porque, na maioria das vezes, eu usava o banheiro que ficava dentro do quarto e tinha ferrolho. Eu gastava a tarde inteira sozinha colhendo frutas e vendo os patos brincando com a água das suas piscininhas.
Lembrar é difícil.
Muitas coisas continuam esquecidas, bloqueadas, recalcadas, descoladas da minha consciência. Mas sempre estiveram ativas e me mantêm afogada em cortisol e adrenalina, em hipervigilância, desde a primeira vez que meu corpo ligou o alarme-de-luta-ou-fuga, mas eu não tinha como me defender.
Bessel van der Kolk, autor de O corpo guarda as marcas, escreveu:
Se, por algum motivo, a resposta normal for bloqueada – por exemplo, quando as pessoas são imobilizadas, ficam presas ou impedidas de agir de forma eficiente, tanto numa zona de guerra quanto num acidente de carro, num episódio de violência doméstica ou num estupro –, o cérebro continua a secretar substâncias químicas de estresse, enquanto seus circuitos elétricos seguem liberando essas substâncias em vão. Muito tempo depois de passado o evento real, o cérebro pode continuar enviando ao corpo sinais para que ele fuja de uma ameaça que não existe mais. Ser capaz de agir e fazer algo para se proteger é um fator determinante para que uma experiência horrível deixe ou não cicatrizes duradouras.
Infelizmente, a ameaça da qual não consegui fugir aos 3 anos continuou me perseguindo por muito tempo. Até poucas semanas depois de completar 14 anos de vida, fui vítima de abusos cometidos por homens pedófilos. Dois deles, em especial, sabiam bastante bem que eram pedófilos e falavam disso para mim. Hoje entendo quão profundamente eu não entendia o que estava acontecendo.
Continuo me esforçando para lembrar. Há pelo menos três respostas que preciso alcançar: Aquela foi a primeira vez? Quem era aquele homem? Dentro daquele contexto, ele foi o único?
Por muito tempo, tive a convicção de que havia nascido para ser abusada. O que mais poderia explicar os fatos que me atingiram desde tão cedo, por tanto tempo, e que se pareciam com outros fatos, esses outros que me acertaram em outros lugares, cometidos por outros homens? Eu sentia que estava marcada com ferro quente. Os outros olhavam para mim e sabiam que eu era abusável.
Felizmente, não penso mais assim.
Ano passado, em 2024, escrevi um livro inteiro em que sou uma narradora-protagonista de três faces em poemas sobre trauma, abuso, ser menina e continuar caminhando. Aos 3 anos, aos 13 anos e aos 33 anos. O livro se chama Caminho para o grito.
Caminho para o grito está em pré-venda aqui.
Dividido em três partes que acompanham o amadurecimento ― da infância vulnerável à maturidade reflexiva ―, Caminho para o grito traça um percurso íntimo de elaboração do trauma, no qual cada verso é um passo rumo à libertação.
Não é uma leitura fácil, nem pretende ser. É um convite para encarar as feridas abertas pela violência de gênero, pelo abuso infantil e pelo machismo estrutural. É também um testemunho de que, mesmo das cicatrizes mais profundas, pode emergir o grito reprimido: a recusa em permanecer silenciada, a força para ressignificar o passado e a determinação de reconquistar o poder sobre a própria narrativa.
Este não é apenas um livro de poemas ― é um ato de coragem e um espaço de acolhimento para encontrar nas palavras o que por tanto tempo permaneceu inominável.
Se você não poderá comparecer ao evento de lançamento em São Paulo, com data ainda por marcar, mas que provavelmente acontecerá no início de setembro, apoie minha criação literária durante a pré-venda e chegue mais perto. Quero criar e guardar memórias bonitas a partir dessa obra.
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Lady Gaga cantando essa música? Bang Bang.
Bang bang, he shot me down
Bang bang, I hit the ground
Bang bang, that awful sound
Clube de leitura - Trauma e Literatura - Online e gratuito
Dia 06/07 teremos o encontro online (e grátis!) do clube de leitura do Hub Górgona. O livro do mês é o internacionalmente premiado A palavra que resta, de Stênio Gardel. Para participar, basta ler e entrar no grupo do clube no WhatsApp (não se preocupe, só quem pode enviar mensagens sou eu). O link do encontro será enviado no dia do clube dentro do grupo.
E mais: o clube não é apenas um espaço para trocarmos perspectivas sobre a leitura. No início do encontro, faço uma aula expositiva analisando como os temas relacionados ao trauma foram abordados e escritos na obra. Uma oportunidade para aprender a escrever sobre trauma com cada vez mais profundidade.
Saiba mais sobre meu trabalho com o Hub Górgona no site e siga o perfil no instagram.
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Beijos bonitos de se lembrar,
Jarid
Jarid, é difícil ter o que dizer depois de ler seu texto. Talvez não precise dizer mesmo nada. Só muita revolta por você ter passado tantas vezes por algo tão injusto e terrível. E muita admiração por sua coragem visceral de escrever sobre isso. Abraços.
💔