Traumas que viram doenças, livros e risadas
Como se não bastasse tudo que os adultos fizeram contra mim, as consequências vão além dos aspectos psicológicos, elas também aumentam, e muito, as chances de que eu desenvolva doenças físicas
Na espera da emergência de ortopedia, olho para a pulseira colocada no meu pulso durante a triagem e penso sobre meu nome. Com oito anos, tinha a mania de repetir meu nome em voz alta – ja rí di – tentando gostar dos sons que ouvia. Em seguida, repetia o nome da minha prima – fu la na – que, na minha opinião, tinha um nome muito mais bonito e uma vida muito mais feliz.
Debaixo da árvore de Natal na casa dos meus avós paternos, muitos pacotes tinham o nome fu la na, enquanto o meu nome ja rí di aparecia colado ao único papel de presente que nem precisaria existir, pois eu já sabia o que ganharia: um diário novo para o ano novo.
Na tela, o número da minha senha é chamado. Agradeço às deusas por ter sido rápido, porque não aguento ficar sentada. É sexta-feira e, naquele momento, eu deveria estar dentro de um táxi para o aeroporto, pois no dia seguinte participaria de um evento literário como uma das principais convidadas. Por alguns meses, recebi notificações no meu e-mail que mostravam matérias e notícias sobre minha futura presença.
“Nome de destaque”.
Infelizmente, como o documento médico recomendando que eu parasse tudo por pelo menos cinco dias me diria, eu não ouviria o nome ser chamado do palco e nem responderia à pergunta que quase sempre me fazem: “é assim que se fala seu nome?”
— Na verdade é ja rí di, mas pode me chamar de já ri di ou ja rrí di ou ja rí, eu atendo por todos.
A resposta de sempre seguida pelas risadas de sempre.
Não me incomoda e eu gosto quando adicionam a pergunta sobre o significado do meu nome e sua origem. Coisa do meu avô paterno, Abraão, que se acha o próprio Abraão da Bíblia e que escolheu meu nome direto dela. Ele considerou que o original, Jared, soava muito masculino, mas isso se resolveria trocando o “e” por “i”. Jarid. Pronto, feminino. Não sei se ele sabia o significado, mas quer dizer “causador de contendas”. Acho que Freud explicou que o significado do nome atua no inconsciente. Psicanálise freudiana ou explicação mágica acompanhada do aviso “cuidado com o nome que você escolhe para seu filho”, eu sou uma causadora – no feminino – de contendas.
Sentada de frente para o médico, a discórdia está entre a dor excruciante que sinto e o desejo de encontrar meus leitores do outro lado do país.
Começo a trocar mensagens com o organizador do evento, que é querido e compreensivo, embora esteja perceptivelmente desesperado, e explico que não tenho condições físicas de viajar. Enquanto recebo cerca de seis medicamentos diferentes direto na veia, envio o atestado, proponho participar por transmissão ao vivo online, peço perdão. Penso que, mais uma vez, sou traída pelo meu corpo.
Dias depois, estou organizando o conteúdo para o curso Escrevendo a infância ferida, em que vou ensinar como escrever literatura sobre trauma na infância. Revisito um livro que amo e li há alguns anos, dessa vez focando nos capítulos sobre crianças e traumas e consequências do traumas. No exato instante em que engulo três comprimidos de cafeína-30mg-carisoprodol-125mg-diclofenaco-sódico-50mg-paracetamol-300mg, sabendo que não vão diminuir a dor que sinto, leio:
“Completado o estudo e analisados os dados, Rich disse que o grupo de vítimas de pedofilia apresentava uma proporção anormal de células de CD45 RA e RO em comparação com o grupo de não traumatizadas. As células CD45 são as “células de memória” do sistema imunológico. Algumas delas, as chamadas células RA, foram ativadas por exposição a toxinas no passado e reagem com rapidez a ameaças ambientais que já enfrentaram. As células RO, por sua vez, são reservadas para novos desafios; o corpo recorre a elas para lidar com ameaças nunca enfrentadas. A razão RA-RO é o equilíbrio entre células que reconhecem toxinas conhecidas e células que estão à espera de novas informações para serem ativadas. Em pacientes com histórico de pedofilia, o número de células RA prontas para entrar em ação é maior que o normal. Em decorrência disso, o sistema imunológico fica supersensível a ameaças, o que o predispõe a montar uma defesa quando não é preciso, mesmo que signifique atacar as células do próprio corpo.”
Meu corpo me ataca com frequência e há bastante tempo. Tive câncer (estou em remissão há cinco anos) e tenho outros problemas de saúde variados. Alguns deles estão na coluna, causados também pela obesidade. A obesidade que tenho desde criança e existe por causa dos traumas que sofri. Entre esses traumas, ser vítima de pedofilia por pelo menos 12 anos.
Um efeito dominó muito interessante.
Estou cansada. Mudo de livro, dessa vez uma obra escrita por uma pediatra.
“Ao abrir o prontuário, vi sua data de nascimento e tornei a encará-lo — Diego era um fofo, mas baixinho. (…) O que seria ótimo, exceto pelo fato de Diego ter sete. Que estranho, pensei, porque, fora isso, ele parecia um garoto absolutamente normal. Arrastei a cadeira até a maca e peguei o estetoscópio. De perto, notei placas ressecadas de eczema nas dobras dos cotovelos e, ao auscultar os pulmões, ouvi chiado claro. A enfermeira da escola encaminhara Diego para avaliação de TDAH. Se Diego fazia parte dos milhões de crianças com TDAH ainda era incerto; já seus diagnósticos principais pareciam ser asma persistente, eczema e atraso de crescimento.
A mãe, Rosa, observava nervosa enquanto eu examinava o filho. (…) Nos dez minutos seguintes, contou sobre o abuso sexual sofrido por Diego aos quatro anos. (…) Diego passou a ter problemas na pré-escola e, à medida que avançava, ficava cada vez mais atrasado. Para completar, o marido de Rosa se culpava e parecia sempre irritado. Ele já bebia além do que ela gostaria, mas, após o episódio, piorou muito.
(…)
Desde que abrimos a clínica, em 2007, eu sentia que algo médico ocorria com meus pacientes, mas eu não entendia bem. Começou com a enxurrada de casos de TDAH encaminhados. Como com Diego, os sintomas da maioria não surgiam do nada: apareciam em pacientes que enfrentavam traumas ou grandes rupturas — como gêmeos que fracassavam na escola e brigavam após testemunhar uma tentativa de assassinato em casa, ou três irmãos cujas notas despencaram quando o divórcio dos pais virou briga violenta a ponto de o tribunal exigir trocas de custódia na delegacia de Bayview.
(…)
Lembrei de Kayla, dez anos, cuja asma era difícil de controlar. Depois da última crise, revisei cada detalhe da medicação com mãe e filha. Perguntei se a mãe lembrava de algum outro gatilho não identificado (havíamos checado de pelos de animal a produtos de limpeza); ela respondeu:
— Bem, a asma dela piora sempre que o pai soca a parede. Acha que pode ter relação?”
Na manhã seguinte, converso com minha psicóloga. Sinto uma resignação indignada e, ao mesmo tempo, solto uma piada atrás da outra. Como se não bastasse tudo que os adultos fizeram contra mim, essas mesmas ações ainda me trouxeram e continuam trazendo consequências que vão além dos aspectos psicológicos e emocionais, elas também aumentam, e muito, as chances de que eu desenvolva diversos tipos de doenças físicas. Um dos livros que utilizo no curso Escrevendo o trauma e agora no curso Escrevendo a infância ferida compartilha porcentagens altíssimas ilustrando como os traumas vividos na infância podem destruir a saúde física das vítimas.
Com minha psicóloga, posso fazer piada disso tudo. Das coisas mais horríveis que passei. E debochar das consequências. O fato de que ela ri comigo é exatamente o que preciso. Se ela reagisse com semblante sério ou preocupado, eu pararia de fazer psicoterapia imediatamente. Meu senso de humor é bonito, importante e me trouxe até aqui.
Apesar da dor física que estou sentindo agora – e não, nenhum remédio faz efeito, nem na veia – sei que na próxima sessão de terapia eu tenho grandes chances de dar risada.
Literatura e trauma, na infância, trauma e literatura
Quer escrever um livro ou um conto sobre trauma na infância? Uma personagem criança, uma narradora criança ou um adulto que fala sobre seus traumas vividos quando criança?
Agora você sabe, depois da primeira parte da edição dessa newsletter, que eu sou qualificadíssima para te ajudar com isso. Óbvio, né?
Dá uma olhada nas informações sobre meu curso Escrevendo a infância ferida.
Ainda dá tempo de se inscrever e, sinceramente, o curso está maravilhoso.
Quem transmuta trauma em beleza
Em breve vou escrever sobre como essa mulher do vídeo acima é a artista que escreve sobre trauma (e canta trauma, toca trauma, dança trauma, veste trauma, fala sobre trauma) do modo mais genial que existe.
Nessa edição da minha newsletter, recomendo – como médica especialista aqui segurando um atestado para você – que escute/assista ao vídeo acima. Entre no meu clima, meu bem.
(Ah-ah) screamin' for me, baby
(Ah-ah) like you're gonna die
(Ah-ah) poison on the inside
I could be your antidote tonight
Clube de leitura - Trauma e Literatura
Vem que é de graça!
Dentro do meu trabalho com o Hub Górgona, criei um clube de leitura que vai além da conversa sobre o que achamos do livro.
O encontro é iniciado por uma exposição em que analiso e explico como o tema do trauma, em suas mais diversas faces, foi abordado na obra. Técnicas de escrita, representação, enredo e tudo mais. Depois abrimos para conversa.
O livro desse mês é o celebradíssimo Eu sei por que o pássaro canta na gaiola da celebradíssima Maya Angelou.
Ainda dá tempo de ler e participar do encontro, que será dia 08/06 das 10h às 12h.
Saiba como participar aqui no site ou aqui no instagram.
Caminho para o grito sendo aberto
Finalmente é junho e a pré-venda do meu novo livro, Caminho para o grito, em breve será aberta.
É um livro de poesia sobre ser uma menina e sua experiência como vítima de pedofilia.
O nome na capa é ja rí di.
Jarid Arraes.
Eu peguei aquilo tudo e eu transformei em arte.
É isso, mas vale o aviso: essa newsletter não passou por revisão. Erros fazem parte.
Beijos como antídotos,
ja rí di
Meu amor, te sinto demais. Espero que você se recupere logo. Estou aqui pro que você precisar. ♥️
ja rí di <3 errar tb é caminho! esse espaço é um abraço na semana! adoro te ler